segunda-feira, 16 de outubro de 2017

Precisamos falar sobre a ração humana (a tal da farinata).


     Neste mundo marcado pelas desigualdades, onde apesar de toda a riqueza, o conhecimento e a tecnologia, milhões de pessoas ainda passam fome e necessidades básicas, parece ser boa notícia a proposta de uma política pública de erradicação da fome. Mas, veja bem, a alimentação adequada já é um direito humano básico, teoricamente garantido desde 1948 pela Declaração Universal dos Direitos Humanos. É também um direito social previsto pelo artigo 6º da Constituição Federal de 1988, e reforçado pelo Guia alimentar para a População Brasileira, documento oficial do Ministério da Saúde, publicado em 2005. Teoria tem de monte e muito bem escrita por cientistas e pesquisadores sociais. Ou seja, estamos diante de um desafio social que, na verdade, é uma vergonha. Afinal, a fome é o maior problema solucionável do mundo, segundo a ONG Banco de Alimentos.
     O que precisamos é de prática. Bancos de doações de alimentos já se dedicam à distribuição de alimentos excedentes. Empresas doam alimentos com data de vencimento próximo. Mas ainda não é o suficiente. Milhares de famílias não têm o que comer em São Paulo. Pois bem, diante do quadro de insegurança alimentar, a prefeitura resolveu tomar uma atitude: distribuir alimentos para as famílias em situação de carência alimentar. Ufa! É o mínimo que se espera de uma gestão moderna da 10ª cidade mais rica do planeta e com o maior PIB do Brasil. Só que não. 
     É que o composto nutricional granulado, objeto desta ação, não é um alimento. Trata-se de produto alimentício industrializado, ultraprocessado, produzido por uma única empresa, sem a forma de um alimento, sem cor, sem sabor, sem contexto cultural. Basicamente uma ração para humanos que negligencia a comensalidade. Explico: etimologicamente, comensalidade deriva de mensa, em Latim, que significa conviver à mesa, envolvendo não somente o que se come (padrão alimentar), mas, principalmente, como se come. E mais: o termo conviver deriva de cum vivere, comer junto, dividir o pão. Lar deriva de lare: parte da cozinha onde se acende o fogo. Em outras palavras, alimentos de verdade - não as caixinhas de surpresas que se proliferam nas gôndolas dos supermercados - são fontes inesgotáveis de saúde e prazer pelo seu gosto, forma, cor, aroma e textura naturais, além de seus significados culturais.
     É óbvio que nos alimentamos para obter energia, construir, sustentar e reparar tecidos e órgãos e para regular funções do organismo. Mas a gente não quer só comida, não é mesmo? Nos alimentamos também para ter prazer e troca de afeto desde que começamos a nos reunir em volta da fogueira - o que já faz um tempinho. Os alimentos estão presentes em todas as celebrações importantes para seres humanos, nos quatro cantos da Terra: casamentos, aniversários e até velórios, simbolizando também identidades culturais. A comensalidade nos deu a capacidade de repartir os alimentos e de esperar pela sua vez. Foi assim que o homo sapiens saiu da condição biológica para a social, ao ter amenizada a agressividade inata dos humanos, o que contribuiu inclusive para solidificar a relação entre homens e mulheres, numa prévia do que seria um casamento com a divisão sexual do trabalho e a primeira estrutura rudimentar de família.
     Alimentos são fontes de prazer ou desprazer. Portanto, a percepção sensorial de um alimento não é característica exclusiva deste, mas sim, o resultado da interação com o comensal, que precisa ser considerado durante um planejamento nutricional (estilo de vida, preferências, possibilidades e capacidade digestiva). Indivíduos fazem parte de famílias, comunidades e nações. Dessa forma, a alimentação - recheada de cultura, afetividade e até religiosidade - está indissociavelmente ligada a um contexto cultural global. A cadeia alimentar envolve sutilezas como a satisfação do paladar, além da nutrição para a sobrevivência dos indivíduos, famílias e comunidades. A nutrição se dá pela colaboração e generosidade de uma enorme rede, à medida em que cada garfada também é feita de luz e calor do sol, da chuva, de bactérias, fungos e insetos do solo e ar, do trabalho de animais e de pessoas que plantam, colhem, transportam, preparam e servem a comida à mesa. Cada refeição é um milagre coletivo que nutre a vida. Ou não.

     Na teoria e na prática, todos esses componentes precisam ser considerados em um plano nutricional holístico, saudável e ético que expanda a consciência dos indivíduos na direção de uma coletividade mais justa, colaborativa, sensível e harmoniosa sob o amplo conceito de sustentabilidade sócio-ambiental.
     A dieta adequada deve atender, individual e coletivamente, aos quesitos da harmonia e adequação em quantidade, qualidade e variedade;  combinação entre os alimentos, método de preparação (incluindo a higiene), tempo (a idade do comensal, o momento das refeições, as fases da vida, a sazonalidade, local (respeitando características regionais e culturais), potência digestiva e genética, além de ser economicamente viável, socialmente justa, culturalmente diversa e ambientalmente sustentável.
     Alimentação se dá em função de alimentos e não de nutrientes. Todos os grupos de alimentos devem compor a dieta humana diária. Nenhum alimento específico - ou grupos deles - isoladamente é suficiente para fornecer todos os nutrientes necessários a uma boa nutrição e, consequente, manutenção da saúde.

     Os nutrientes não podem ser retirados do contexto do alimento, o alimento do contexto da dieta e a dieta do contexto da vida. Os alimentos são muito mais do que a soma dos seus ingredientes. O todo é sempre mais do que a soma das partes. Assim como o ser humano não é um saco de ossos que fala e só precisa de um composto nutritivo industrializado para suprir a sua demanda biológica.
     Embora a fome seja também um instinto fisiológico de sobrevivência, há mais mistérios entre o céu da boca e a terra do que supõem nossas papilas. Os alimentos e a forma como nos alimentamos estão intimamente relacionados à vitalidade. Ao nos nutrimos, construímos o corpo que é suporte para a expressão da alma e dos nossos genes e talentos inatos. Os aspectos mais sutis e delicados do ser se manifestam nas emoções, no olhar, nas palavras e ações. Toda essa rede de matéria e energias - subjetiva, dinâmica e complexa -, está profundamente conectada à forma e ao conteúdo do pão nosso de cada dia.

A cultura do marketing e do lucro a qualquer preço está ancorada na visão limitada do “nós” versus “eles”:  nos aproveitamos da fragilidade deles para obter vantagens, fazer notícias e negócios, para que eles façam o trabalho sujo que nós não queremos fazer. Só tem um detalhe: "eles" não existem, só existimos nós. Habitantes do mesmo planeta, respiramos o mesmo ar, temos sentimentos e emoções em comum. Qualquer tipo de desrespeito contra um ser humano impacta no bem estar de todos os outros 7 bilhões. Oferecer um composto granulado disforme atinge a dignidade de todos nós, tudo o que nos une como humanidade. Quem tem fome tem pressa sim. Mas, a fome de carinho e afeto, de cultura, de laços de pertencimento também é urgente Reproduzo, para finalizar, uma oração de autoria de Michel Quoist:

"Todos os sofrimentos, todas as injustiças, as amarguras, as humilhações, as mágoas, os ódios, os desesperos, todos os sofrimentos são uma fome insatisfeita, uma fome de amor.
Assim construíram os homens, lentamente, egoísmo por egoísmo, um mundo desnaturado que esmaga os homens. 
Assim os homens na Terra passam o tempo a se devorar com seus amores machucados, enquanto em torno deles os outros morrem de fome, estendendo-lhes os braços.
Desperdiçaram o amor. O teu amor, Senhor.
Esta noite te peço que me ajudes a amar.
Senhor, ajuda-me a amar. A não desperdiçar minhas faculdades do amor, a amar-me cada vez menos para amar os outros cada vez mais.
Para que, em volta de mim, ninguém sofra nem morra por haver eu roubado  amor de que precisava para viver”.
Oremos, caro Prefeito.




Referências

BRILLAT-SAVARIN, Jean Anthelme. A fisiologia do gosto. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. 379 p.
WRANGHAN, Ricard. Pegando fogo. Por que cozinhar nos tornou humanos. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. 225 p.
MOREIRA, Sueli Aparecida. Alimentação e comensalidade: aspectos  históricos e antropológicos. Cienc. Cult. v.62 no.4. São Paulo. Oct. 2010.
OLIVEIRA, Silvana P; THÉBAUD-MONY, Annie. Estudo de consumo alimentar: em busca de uma abordagem multidisciplinar. Rev. Saúde Pública v. 31 no. 2. São Paulo. Apr. 1997.
Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. PNAN. Política Nacional de Alimentação e Nutrição. 2012. 82 p. Disponível em: http://189.28.128.100/nutricao/docs/geral/pnan2011.pdf. Acesso em: 12 dez. 2012.
POLLAN, Michael. Em defesa da comida: um manifesto. Intrínseca, 2008, Rio de Janeiro. 272 p.


2 comentários:

  1. Tão profundos e tão abrangentes seus argumentos que agradeço pela excelente demonstração de amor ao próximo que somos nós.

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